terça-feira, 6 de janeiro de 2015

A obsolescência das Letras na Era do Lixo


Raquel Rocha
Economista, Comunicóloga, Psicanalista e Especialista em Saúde Mental
Membro da Academia de Letras de Itabuna


Todo final de ano a mesma coisa, pais e mães pegam uma pilha com 10, 20 livros didáticos, que seus filhos utilizaram durante o ano escolar e não têm outra coisa a fazer se não jogar fora. Alguns mais apegados os acumulam em depósito, mesmo sabendo que o destino deles, mais cedo ou mais tarde acabará sendo o lixo, na melhor das hipóteses um lixo reciclável. Eles apenas adiam a dolorosa ação colocando-os no depósito, até que seus corações se aquietem.

O destino desses livros é o lixo porque eles foram “projetados” para isso. Livros caros, livros bons, e ainda assim projetados para o lixo.

Nem sempre foi a assim, num passado bem recente os livros didáticos não iam para o lixo. Porque eles eram feitos para serem usados e reusados, eram feitos para servirem enquanto o conteúdo estivesse atual. Eram livros substanciais, cheios de conhecimentos, livros para serem estudados e lidos, mas não riscados. As atividades eram feitas em um caderno a parte, copiadas do livro ou do quadro negro e respondidas na frente e no verso da folha do caderno. Vocês ainda se lembram disso?

Ao final do ano os livros eram repassados, vendidos ou doados, mas alguém teria oportunidade de aprender naquelas mesmas páginas. E depois um outro alguém, e um outro alguém... Era como um amor sem egoísmo, você amava o que foi de alguém, sabendo que depois de você, seria de um outro alguém.

Não era uma prática de comunidades carentes, pelo contrário, os livros eram repassados principalmente em colégio particulares. Numa época em que o ser ainda significava um pouco mais que o ter, muitas famílias abastadas não se importavam que irmãos mais novos usassem livros que tinham sido dos irmãos mais velhos, ou até de outros alunos. Poucos tinham a futilidade de querer exibir o novo. Até porque muitos livros eram tão bem conservados (devidamente plastificados) que não era possível diferenciar o usado do novo.

Às vezes a própria escola facilitava as trocas de livros entre os pais. Trocas, compras e vendas e lá iam os mesmos livros voltarem a ser úteis no ano seguinte, nas mãos de outra criança. O livro era importante, respeitado e bem cuidado em sua longa vida de provedor de conhecimento. Todos economizavam e o planeta agradecia.

No entanto, isso não era lucrativo. Não, nem um pouco lucrativo.

Sempre que uma criança utilizava os livros de outra as editoras deixavam de vender, e isso era péssimo para os negócios. Então elas trataram logo de evitar esse descabimento, utilizando uma solução simples: Vamos colocar as atividades para serem respondidas no próprio livro! Assim, no final do ano o livro estará todo respondido, sem condições de ser utilizados por outra criança! Assim vendemos mais livros! Ganhamos mais dinheiro! E que se dane o meio ambiente!

E daí que retiramos matéria prima e devolvemos lixo para a natureza? E daí que algumas famílias que priorizam com dificuldade a educação dos filhos vão ter que fazer um sacrifício enorme no início do ano para comprar os caríssimos livros novos? E daí que a produção de papel é uma das atividades humanas mais nocivas ao planeta? E daí que para se produzir 1 tonelada de papel são necessárias de 2 a 3 toneladas de madeira? E daí que o processo de fabricação consome água mais do que qualquer outra atividade industrial? E daí toda energia que esse processo todo consome? e a emissão de CO2, a prática da monocultura extensiva, o risco de desertificação devido ao empobrecimento do solo, a redução da biodiversidade, a extinção de nascentes e mananciais, o deslocamento de populações nativas... E daí?

Nada disso importa. O que importa é só vender, vender e vender. E lucrar, lucrar, lucrar.  É a lógica do consumo na sociedade do descartável.

E nessa lógica jogamos um monte de livros fora anualmente. E todo mundo aceita isso passivamente: as escolas que adotam esses livros, os pais que precisam parcelar a compra em 10x sacrificando orçamento da família, as crianças que encontram tudo pronto e não sabem o que é copiar uma questão do livro para o caderno, sendo que esse processo em si já era também um aprendizado.

E você, que se importa, se sente uma alienígena por se importar com algo que ninguém mais parece se importar: os livros didáticos projetados para o lixo. Não se trata de dinheiro mas dos princípios equivocados da nossa sociedade. Uma sociedade cujos valores estão cada vez mais distorcidos, uma sociedade baseada num modelo onde programa a obsolescência de tudo, inclusive do amor pela natureza e pelo ser.


2 comentários:

  1. "Não se trata de dinheiro mas dos princípios equivocados da nossa sociedade."
    Eu tenho medo, muito medo do que está por vir. Narcisismo, egocentrismo e superficialidade estão tão inseridos no dia a dia que começamos a nos acostumar com isso. Ah se toda humanidade aprendesse a compartilhar mais, de livros à afetos!

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    1. É isso mesmo Raquel, tudo tem se tornado cada vez mais fútil, efêmero e descartável...

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