segunda-feira, 17 de abril de 2017

A Casa Mais Feliz do Mundo.


 
Por Raquel Rocha
Comunicóloga,  Economista
Psicanalista e Especialista em Saúde Mental
Especialista em Neuropsicologia
Membro da Academia de Letras de Itabuna






 
Ficava na beira da estrada, uma estrada de terra amarela, numa  época em que quase não havia carros, o movimento que se via era de cavalos, jumentos, pessoas a pé. As crianças faziam festa, eufóricas, ao avistarem qualquer movimento ao longe. Seu Manoel venerava aquela casa, a casa que foi construída por seu pai, ele adorava morar na beira da estrada, adorava conversar com as dezenas de compadres e comadres que passavam, adorava servir água aos passantes porque no sertão, de alguma forma, todos se ajudam. Seu pai havia construído e morrido naquela casa e Seu Manoel sentia-se orgulhoso de tê-la herdado. Pretendia honrar aquele local até o fim dos seus dias.

Quando seu Manoel estava na lida, Dona Maria era quem fazia as honras da casa. Lá vinha um viajante ao longe e Dona Maria já corria ao pote para pegar água fresquinha. Os nove filhos olhavam curiosos e excitados para os que passavam. De onde vinham? Para onde iam? Poucas vezes eles haviam saído dali e o que tinham visto quando saíram era sempre menor que aquela casa. Aquela era maior e mais feliz casa do mundo.

Seu Manoel parecia mesmo era um Rei na varanda daquela grande casa, com sua esposa ao lado e seus nove filhos brincando no terreiro.

O tempo foi passando e os carros foram surgindo... Estes levantavam mais poeira que os animais.  As pessoas dos carros não paravam para pedir água muito menos para aquele “dedim de prosa”. Dona Maria não notou, estava muito ocupada nas tarefas de casa, limpando poeira, jogando água no terreiro antes de varrer com a vassoura feita de alecrim do mato. Mas seu Manoel notou a mudança, as pessoas dos carros nem olhavam mais para sua casa na beira da estrada.

 As crianças foram crescendo... de repente aquela casa enorme parecia pequena para elas. Uma a uma foram ganhando o mundo. Arrumavam empregos, esposas e maridos...  A chuva era cada vez mais escassa, a poeira cada vez maior. Ficou apenas Seu Manoel e Dona Maria naquela casa. Jamais sairiam de lá, juraram morrer naquele pedaço de chão.

 Nas datas religiosas os filhos não apareciam, estavam longe, as passagens eram caras, os trabalhos não davam folgas. Os compadres e comadres já não os visitavam com tanta frequência, estavam doentes, artrite, artrose, coração...  Aos poucos iam morrendo e somente nesses momentos Seu Manoel e Dona Maria deixavam aquela casa, para se despedir dos amigos, para velar seus corpos a noite inteira com o respeito e afeto de uma vida de cumplicidade e amor àquele chão amarelo.

Um dia Dona Maria também morreu. Não ficou doente, não sofreu, não foi ao hospital, apenas o dia amanheceu e ela não se levantou como de costume para cuidar daquela casa. Poucas pessoas no velório, nem todos os filhos puderam vir. Empregos, filhos, distância... Seu Manoel ficou sozinho naquela casa que para ele ainda era a maior do mundo, mas já não era a mais feliz.

Seu Manoel passou a acordar e se ver sozinho... Aprendeu a preparar sua comida, algo que nunca tinha feito antes. Não aprendeu a limpar a casa, não como Dona Maria. A poeira se acumulava, ele ouvia a voz da esposa mandando  ele tirar as botas antes de entrar em casa, ouvia os gritos animados das crianças que haviam avistado movimento na estrada, ouvia a voz forte do seu pai contando sobre como foi construir aquela casa numa época que as distâncias pareciam muito mais distantes. Seu Manoel se sentia tão solitário que passou a conversar com aquelas vozes... Ele não tomava banho porque Dona Maria não estava lá para mandar, ele já não preparava as refeições porque era triste comer sozinho.

A chuva era cada vez mais escassa, a poeira cada vez maior. Seu Manoel sentava na varanda dias e dias e ia ficando tão amarelado e tão envelhecido quanto aquela casa. Um dia sua filha apareceu para lhe visitar e vendo o estado do pai, sujo e conversando sozinho decidiu que ele não poderia mais viver assim. Seu  Manoel se recusou a sair, disse que morreria naquela casa como seu pai. Mas pessoas vieram, deram-lhe remédios e ele foi arrancado de lá.

Hoje seu Manoel não tem mais nome, seu genro e chama de “velho”.  O aceita em casa por causa da sua aposentadoria. Seu Manoel não tem mais a cor da poeira, tem uma cor pálida de quem nunca sai de um quarto minúsculo. Ela toma muitos comprimidos, mas ainda assim ouve as vozes, de Dona Maria, dos filhos pequenos e do seu velho pai pedindo-lhe que cuide da casa. Seu Manoel não pode cumprir o que prometeu ao pai, ele não consegue mais nem se levantar sozinho, ele não tem mais vontade própria, ele deixou de ser Rei.

A velha casa foi posta a venda há muito tempo, mas ninguém quis comprar, A chuva é cada vez mais escassa, a poeira cada vez maior. Quando vendida, aquela pequena terra será dividido por nove filhos, não vai dar quase nada... por isso a velha casa fica esquecida, na beira da estrada, abandonada, empoeirada... Ela é triste mas ainda conserva o orgulho de um dia ter sido a casa mais feliz do mundo.

Eu sei disso porque passei por lá, eu estava de carro mas parei como os antigos paravam em seus cavalos. Parei porque quando a gente vê uma casa na beira da estrada a gente tem que parar. Parei para um dedim de prosa e aquela velha casa me contou...

 

 

 
 

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