Raquel Rocha
Economista,
Comunicóloga, Psicanalista e Especialista em Saúde Mental
Membro da Academia
de Letras de Itabuna
Todo final de ano a mesma
coisa, pais e mães pegam uma pilha com 10, 20 livros didáticos, que seus filhos
utilizaram durante o ano escolar e não têm outra coisa a fazer se não jogar
fora. Alguns mais apegados os acumulam em depósito, mesmo sabendo que o destino
deles, mais cedo ou mais tarde acabará sendo o lixo, na melhor das hipóteses um
lixo reciclável. Eles apenas adiam a dolorosa ação colocando-os no depósito,
até que seus corações se aquietem.
O destino desses livros é
o lixo porque eles foram “projetados” para isso. Livros caros, livros bons, e
ainda assim projetados para o lixo.
Nem sempre foi a assim,
num passado bem recente os livros didáticos não iam para o lixo. Porque eles
eram feitos para serem usados e reusados, eram feitos para servirem enquanto o
conteúdo estivesse atual. Eram livros substanciais, cheios de conhecimentos,
livros para serem estudados e lidos, mas não riscados. As atividades eram
feitas em um caderno a parte, copiadas do livro ou do quadro negro e
respondidas na frente e no verso da folha do caderno. Vocês ainda se lembram
disso?
Ao final do ano os livros
eram repassados, vendidos ou doados, mas alguém teria oportunidade de aprender
naquelas mesmas páginas. E depois um outro alguém, e um outro alguém... Era
como um amor sem egoísmo, você amava o que foi de alguém, sabendo que depois de
você, seria de um outro alguém.
Não era uma prática de
comunidades carentes, pelo contrário, os livros eram repassados principalmente
em colégio particulares. Numa época em que o ser ainda significava um pouco
mais que o ter, muitas famílias abastadas não se importavam que irmãos mais
novos usassem livros que tinham sido dos irmãos mais velhos, ou até de outros
alunos. Poucos tinham a futilidade de querer exibir o novo. Até porque muitos
livros eram tão bem conservados (devidamente plastificados) que não era
possível diferenciar o usado do novo.
Às vezes a própria escola
facilitava as trocas de livros entre os pais. Trocas, compras e vendas e lá iam
os mesmos livros voltarem a ser úteis no ano seguinte, nas mãos de outra
criança. O livro era importante, respeitado e bem cuidado em sua longa vida de
provedor de conhecimento. Todos economizavam e o planeta agradecia.
No entanto, isso não era
lucrativo. Não, nem um pouco lucrativo.
Sempre que uma criança
utilizava os livros de outra as editoras deixavam de vender, e isso era péssimo
para os negócios. Então elas trataram logo de evitar esse descabimento,
utilizando uma solução simples: Vamos colocar as atividades para serem
respondidas no próprio livro! Assim, no final do ano o livro estará todo
respondido, sem condições de ser utilizados por outra criança! Assim vendemos
mais livros! Ganhamos mais dinheiro! E que se dane o meio ambiente!
E daí que retiramos
matéria prima e devolvemos lixo para a natureza? E daí que algumas famílias que
priorizam com dificuldade a educação dos filhos vão ter que fazer um sacrifício
enorme no início do ano para comprar os caríssimos livros novos? E daí que a
produção de papel é uma das atividades humanas mais nocivas ao planeta? E daí
que para se produzir 1 tonelada de papel são necessárias de 2 a 3 toneladas de
madeira? E daí que o processo de fabricação consome água mais do que qualquer
outra atividade industrial? E daí toda energia que esse processo todo consome?
e a emissão de CO2, a prática da monocultura extensiva, o risco de
desertificação devido ao empobrecimento do solo, a redução da biodiversidade, a
extinção de nascentes e mananciais, o deslocamento de populações nativas... E
daí?
Nada disso importa. O que
importa é só vender, vender e vender. E lucrar, lucrar, lucrar. É a lógica do consumo na sociedade do
descartável.
E nessa lógica jogamos um
monte de livros fora anualmente. E todo mundo aceita isso passivamente: as
escolas que adotam esses livros, os pais que precisam parcelar a compra em 10x
sacrificando orçamento da família, as crianças que encontram tudo pronto e não
sabem o que é copiar uma questão do livro para o caderno, sendo que esse
processo em si já era também um aprendizado.
E você, que se importa, se
sente uma alienígena por se importar com algo que ninguém mais parece se importar:
os livros didáticos projetados para o lixo. Não se trata de dinheiro mas dos
princípios equivocados da nossa sociedade. Uma sociedade cujos valores estão
cada vez mais distorcidos, uma sociedade baseada num modelo onde programa a
obsolescência de tudo, inclusive do amor pela natureza e pelo ser.
"Não se trata de dinheiro mas dos princípios equivocados da nossa sociedade."
ResponderExcluirEu tenho medo, muito medo do que está por vir. Narcisismo, egocentrismo e superficialidade estão tão inseridos no dia a dia que começamos a nos acostumar com isso. Ah se toda humanidade aprendesse a compartilhar mais, de livros à afetos!
É isso mesmo Raquel, tudo tem se tornado cada vez mais fútil, efêmero e descartável...
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