Por Raquel Rocha
Comunicóloga, Economista
Psicanalista e Especialista em Saúde Mental
Especialista em Neuropsicologia
Membro da Academia de Letras de Itabuna
Membro da Academia de Letras de Itabuna
Dia 14/10/2016
Quatro
horas na estrada. Quem já passou por algo assim sabe que a pior parte é a
chegada, talvez só não seja pior que a saída da pessoa amada ao cemitério... E
assim foi a chegada, chegamos com nossas lágrimas, chegamos para viver o triste
momento da despedida. Já estava tudo arrumado, caixão, coroa de flores, mas
faltava o local. Cidade pequena não tem lugar para velório, as pessoas são
veladas em casa mesmo. Ocorre que alguém havia quebrado a chave dentro da
fechadura nesse mesmo dia, e a porta de casa da minha mãe não abria. Minha avó estava sendo velada num local
improvisado com 3 pessoas da família e mais 4 visitantes. Não sei qual a
palavra que define a pessoa que vai ao velório... na dúvida, fica visitante
mesmo.
A
fechadura foi quebrada, uma pequena procissão as 03 da madrugada de onze
pessoas acompanharam o translado do caixão. Onze pessoas, um caixão, cadeiras,
suporte do caixão, livro de assinatura, tapete, coroa de flores... A pequena procissão poderia ter sido a mais
surreal das cenas mas ainda não foi. Trouxemos tudo pela rua e remontamos o
pequeno velório na sala da casa.
Com a família
aumentada nossos 4 visitantes se sentiram confortáveis para irem descansar em
suas casas. Não chegaria mais ninguém. Fechamos a porta. Novamente estávamos na
intimidade da família, da nossa casa. Incrivelmente aquele caixão no meio
parecia tão natural... como se o lugar dele fosse ali na nossa casa, entre nós.
As
crianças não tinham medo, conversavam com a bizavó já gelada, perguntavam
coisas, sabiam que o momento não era de brincadeira, mas também sabiam que não
era de desespero, havia respeito, serenidade e saudades.
Assim
vimos o dia amanhecer, sentados na sala, conversando, relembrando, com minha
avó no meio de nós.
Com o
amanhecer do dia o cansaço foi se fazendo mais forte que nós, íamos deitar aos
poucos... deixar a sala era difícil
tínhamos a sensação de que estávamos deixando-a sozinha... Eu queria colocar um
colchão no chão para dormir ao lado do caixão e só não o fiz por falta de
espaço. As 6 da manhã chegou minha vez de ser derrotada pelo cansaço, fui para
o quarto ao lado, o corpo desabou numa cama, mas de alguma forma continuei na
sala. Ouvia tudo, sentia tudo,
Duas
horas depois levantei, o corpo pesado queria continuar deitado mas eu o
arrastei para a posição vertical. Não havia tido troca de roupa, levantei
pronta para continuar no velório. Sonolenta, abri a porta do quarto e me vi de
cara com o caixão dando "Bom dia vó...". Toquei em sua testa, como
quem toca na testa de uma criança febril esperando que ela esteja menos quente.
Mas minha avó não estava menos fria.
Tudo
continuou tão real como num filme de Almodóvar, tão irreal quanto os velórios
americanos. Sempre achei estranho as pessoas comerem, falarem de comida nos
velórios americanos, mas ali estava eu, tomando café , falando do almoço, do
que seria feito, das pessoa que chegariam. Ninguém falava em hora de enterro,
era como se quiséssemos deixá-la com a família pra sempre.
Não
achem esse texto mórbido, ou achem se quiserem... pouco importa, mas de fato a
morte nunca tinha se apresentado de forma tão natural para mim.
Continuamos
só nós... pouquíssimas pessoas chegavam, um ou outro idoso da vizinhança que
havia recebido a notícia e foram ao velório mesmo sem ter conhecido minha avó.
Tanto desconhecimento decorre do fato de que minha avó morou a vida inteira em
outro estado, Há quatro anos começou a apresentar sintomas de Alzheimer, na época
meu avó já estava de cama, sem lucidez alguma. Trouxemos ambos para a Bahia, as
filhas se revezaram bravamente no cuidado dos dois idosos. Minha avó chegou andando,
conversando, mas não conhecia ninguém, seu olhar era distante, era como se ela
não estivesse entre nós. Eu perguntava: “Vó, a senhora sabe quem sou eu?” Ela: “Não...” Eu explicava “Sou Raquel vó,
sua neta” Algo clareava na mente dela e ela dizia com olhar de reconhecimento “Ah,
é a Raquelzinha!”. Sentia que ela havia me reconhecido mas 40 segundos depois
quando perguntava novamente “Vó, sabe quem sou eu?” Ela respondia “Não...”
Em
pouco tempo ela não sabia mais quem era ela. Minha avó agia como criança,
quebrava as coisas, fugia de casa, se machucava. Um dia fugiu da cama a noite,
espalhou bananas pela casa e acabou escorregando nessas bananas. Quebrou a
bacia e não andou mais. O Alzheimer a levou aos poucos nesses quatro anos, acamada
ela chamava minha mãe de sua mãe, já não comia sozinha, as filhas lhe davam
mamadeira, foi deixando de falar, foi perdendo peso apesar da quantidade de
mamadeiras que tomava, seu olhar cada vez mais perdido, sua fala mais fraca. No
último ano ela mal abria o olho, não falava mais nada, a vezes gemia. Ela
sofria.
Minha vó
não havia morrido na noite passada, minha avó morreu aos poucos durante quatro
anos. Tivemos quatro anos para elaborar essa perda, vivemos esse luto por 4
anos, por isso seu corpo no meio da sala não nos causava desespero, por isso
aquela sensação de paz, de descanso, de que ela estava finalmente livre das
dores, da sua mente embaralhada, do seu corpo que definhava.
Nada
para minha avó foi fácil, nem sua vida nem sua morte. Minha avó perdeu sua mãe
quando era muito pequena, seu pai casou-se novamente. Minha avó foi dada (dada mesmo) em
casamento ao meu avô, 14 anos mais velho que ela, e que já havia sido casado
com sua irmã mais velha e esta havia morrido de parto. A mais velha não deu
conta, leve a mais nova, como uma mercadoria. Foi assim.
Meu avô
não era fácil, era grosso, falava gritando. Minha avó teve 6 filhos com ele.
Acredito que a vida com ele era menos ruim que a vida na casa do pai, porque
ela nunca falou em se separar. Será que as mulheres de antigamente sabiam que tinham
o direito de se separar? O fato é que minha avó permaneceu ao lado do meu avô
por toda sua vida, cuidou dele até onde aguentou. Seu nome foi o último que ela
deixou de falar. Talvez o amasse, dentro
do que ela conhecia do amor.
Hoje, meu
avô, acamado na casa ao lado foi comunicado da morte dela. Mas ele não sabia
quem era ela, não sabia o que era a morte. Meu pai o trouxe de cadeira de rodas
para perto do caixão, ele olhou para o caixão como quem olhava para nada. Ele
também já não está aqui, se foi antes dela.
Mais
familiares chegaram... Nos abraçávamos
naquela sala vazia na cumplicidade da família, família que se entende só pelo
olhar. Minha irmã chegou, parecia sofrida, ela morou com minha mãe uma parte desses
quatro anos, e a ajudou cuidar da minha avó.
Um
pastor chegou, ficou por cerca de 20 minutos e disse algumas palavras. Minha
avó passou a vida na igreja católica mais havia de batizado na igreja
evangélica antes de ficar doente. Acho que ela teria gostado das palavras ditas.
O dia
pareceu durar uma semana, mas estávamos bem, estávamos juntos esticando nosso
tempo com ela. Notei que nenhum jovem apareceu, nenhuma amiga, nem minha, nem
das minhas irmãs, nem dos meus sobrinhos...
Disseram que iam, mas de fato, ninguém foi. Acho que os jovens não
gostam de velório, num velório a morte nos esfrega na cara que nosso fim será
aquele. E para que pensar em morte quando temos tanta vida?
Eu
também não ia muito a velórios, não ia porque não sabia o quanto era importante
ir. Mas ano passado meu sogro faleceu, inesperadamente, quando parecia forte e
saudável, e eu me lembro de cada rosto amigo que esteve conosco nesse dia.
Depois disso, passei a ir a todos os velórios.
Os
idosos sempre vão, como se eles estivesse fazendo um depósito. Como se sua ida
aos velórios dos outros garantisse que pessoas irão aos seus. Eu acho que funciona... Porque nessa vida
tudo que a gente planta a gente colhe.
O
enterro foi no final da tarde, o sol já se preparava para se por. Não podíamos
adiar mais. Não vou relatar a parte do cemitério... que como disse no começo
desse texto é pior parte. Deixar o corpo de uma pessoa amada no cemitério é
doloroso. Não gosto do formato dos cemitérios, gostaria que minha vó tivesse ido
pata uma cápsula orgânica e se transformado em uma linda árvore.
Eu acho
que do dia de hoje vou lembrar dela em casa, no meio da sala com a família,
mesmo que dentro daquele caixão estivesse só seu corpo. Vou lembrar da saudade
que sentimos, do carinho, das lembranças que lembramos, dos abraços em família,
dos olhares que diziam mais que palavras, vou lembrar das crianças entendendo a
morte como algo natural, das três irmãs que se despediam da mãe como se quatro anos de preparo não houvesse sido suficiente. Nem uma vida inteira seria.
Na
cidade grande onde moro os mortos não são mais velados em casa, existem locais
para isso, locais onde sai um corpo e entra outro, como numa linha de produção.
Locais frios. Acho os velórios em casa mais respeitoso, mais carinhosos. Não
entendo por que as pessoas querem tanto se distanciar da morte, tiram os mortos
das suas casas, não deixam as crianças verem, não entram em cemitério, não
falam no assunto... Estão negando seu próprio caminho.
Parte
desse texto foi escrito ao lado do seu caixão, a parte final agora, na volta do
cemitério. Escrevo tentando sublimar mas também tentando entender. Minha avó me
ensinou muitas coisas em vida porém a mais importante ela me ensinou
hoje, me ensinou que nossa partida dessa vida pode ser repleta de paz, de amor
e de carinho.
Gosto de pensar em minha avó entrando no reino dos céus com uma chuva de pétalas de rosas e um monte de gente amada a esperando. Dê um abraço na tia Maria e no tio João por mim vó. Fiquem juntos aí em cima como estiveram juntos aqui na terra, desfrutem do acolhimento de Deus e da sensação de uma vida completa, na qual muitas coisas faltaram, porém o mais importante sobrou: O AMOR.
Gosto de pensar em minha avó entrando no reino dos céus com uma chuva de pétalas de rosas e um monte de gente amada a esperando. Dê um abraço na tia Maria e no tio João por mim vó. Fiquem juntos aí em cima como estiveram juntos aqui na terra, desfrutem do acolhimento de Deus e da sensação de uma vida completa, na qual muitas coisas faltaram, porém o mais importante sobrou: O AMOR.
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