domingo, 19 de outubro de 2014

Substâncias Psicoativas- História e Cenário Atual



O Álcool e a Maconha na História

A história do álcool no Brasil remonta já à época da colonização. Os portugueses, ao chegaram no Brasil se depararam com uma bebida produzida pelos indígenas a partir da fermentação da mandioca, chamada cauim. Os portugueses, bem como outros europeus, já conheciam o vinho e a cerveja, mas estas não eram tão fortes quanto a bebida produzida pelos indígenas. Os índios também usavam o tabaco, que também já era conhecido pelos portugueses.

É importante ressaltar que os indígenas consumiam esta bebida em festas e rituais, havia, portanto, uma espécie de controle devido a demarcação cerimonial e religiosa.  Não há relatos de dependência alcoólica nessa época como acontece hoje, em que o consumo excessivo de bebidas alcoólicas pelos indígenas (seja pela condição de extrema pobreza, perda de identidade cultural ou convivência com o homem branco) se tornou um grave problema.

Voltando aos tempos da colonização, os portugueses logo aprenderam a produzir a cachaça a partir da cana de açúcar.  “O açúcar para adoçar a boca dos europeus, como disse o antropólogo Darcy Ribeiro, da amargura da escravidão; a cachaça para alterar a consciência, para calar as dores do corpo e da alma, para açoitar espíritos em festas, para atiçar coragem em covardes e para aplacar traições e Ilusões.” (Supera, Mod 01, pág 12) E até hoje, a cachaça está entranhada na cultura brasileira que encontra motivos para o uso do álcool tanto na alegria quanto na tristeza. Seu alto teor de álcool e seu menor custo fazem com que este venha a ser um problema de grandes proporções.

O uso do álcool não está atrelado somente a vontade de beber, ele está relacionado a diversos outros fatores, entre eles sociais (bebe-se para fazer parte de um grupo), culturais (vinho no natal, licor no São João, espumantes para comemorar vitórias), por isso é muito importante consideram o uso do álcool em um contexto mais amplo.

Além da diversidade dos fatores que levam ao consumo, há também diferença nas consequências desse consumo: Sob a mesma quantidade álcool algumas pessoas se tornam mais agressiva, outras mais alegres, outras mais depressivas. Essa variação no efeito de substâncias psicoativas depende das propriedades farmacológicas, da pessoa que usa, do ambiente e do contexto.

“A embriaguez do alcoolista supõe um homem tornado objeto, incapaz, a partir de então, de se abster de bebidas perturbadoras. Muitas vezes sua dependência está relacionada a uma incapacidade de encontrar em si próprio o que permitiria um domínio, uma resistência às dores do mundo.” (Michel Onfray, filósofo francês)


A Maconha

O uso de maconha com fins medicinais é antigo, remonta de 2.700 a.C. Na Europa também era utilizada com a mesma finalidade durante os séculos XVIII e XIX. Marcelo Ribeiro, psiquiatra da Unifesp explica "A maconha foi utilizada especialmente na Índia, no Oriente Médio e na África. Na índia é utilizada dentro de rituais religiosos e no Oriente Médio entre a população mais pobre"

No Brasil ela foi introduzida pelos escravos africanos no século 16 e difundida também entre os Indígenas, da mesma forma, usada com propósitos medicinais e nas atividades de recreação.


"Os escravos traziam nas barras dos vestidos, das tangas. No século XVII, o vice-rei de Portugal mandava carregamentos de sementes de maconha para que a planta fosse cultivada no Brasil em grande quantidade. Então, a maconha era extremamente importante como produtora de fibra. A descoberta do Brasil se deu, em parte, por causa da maconha. As velas das nossas caravelas eram feitas de cânhamo. Cânhamo é maconha", conta o psicofarmacologista da Unifesp Elisaldo Carlini. 

“No Brasil, no final do primeiro quarto do século XX, segundo descrição de Pernambuco-Filho & Botelho, distinguiam-se duas classes de “vícios”: os “vícios elegantes”, que eram o da morfina, da heroína e da cocaína, consumidos pelas elites (brancas, em sua maioria) e os “vícios deselegantes”, destacando-se o alcoolismo e o maconhismo, próprios das camadas pobres, em geral, formadas por negros e seus descendentes. “(Supera, Mod 01, pág 18) No entanto, em pouco tempo o uso espalhou-se também entre as classes mais altas. Apesar disso permanece no imaginário social o estereótipo “pobre - preto - maconheiro - marginal - bandido”



Inalantes, Cocaína e Crack no Brasil

 Os inalantes são geralmente utilizados pelas classes sociais mais vulneráveis. Estudos nas décadas de 80 e 90 apontaram maior uso entre crianças e adolescentes, a maioria deles moradores de rua. Conseguimos compreender melhor essa ralação ao analisarmos os efeitos dos inalantes no organismo: redução da sensação de fome, frio e dor bem como alucinações.

Em relação a cocaína pesquisas tem apontado um aumento do consumo nas últimas décadas. A folha de coca tem sido usada há milênios pelos povos andinos para diminuir a fadiga e o cansaço. No Brasil ela já foi comercializada pelo laboratório Bayer, indicada para situações de cansaço e desânimo. O crack é uma forma de cocaína preparada para o consumo via inalação. Os registram mostram que ela começou a ser utilizada há pouco mais de 20 anos, mas apesar de recente seu uso tem aumentado muito devido ao seu menor curso (em relação ao pó da cocaína), efeito rápido, utilização mais fácil (fumado)


Redução de Estigmas e Estereótipos

Para lidarmos com o problema de forma eficiente é necessário deixar de lado os estigmas e os estereótipos. Estigma, segundo o dicionário Aurélio é uma marca, cicatriz perdurável. Essa marca, que pode ser física ou social, tem conotação negativa e levam o sujeito que a carrega a ser marginalizado. Já estereótipo é uma visão preconcebida de pessoas ou grupos, uma generalização que é feita sem o conhecimento mais apurado do sujeito ou grupo.

É importante evitar ideias arraigadas como a de que a droga é uma porta sem saída. Pesquisas nos EUA revelam que 92% dos jovens que experimentaram drogas uma vez não seguem fazendo uso regular, mas na medida em que essa concepção é disseminada, além de aumentar o estigma do usuário, ela pode ser internalizada pelo próprio sujeito desmotivando-o “Se não há saída porque eu vou procura-la?”. Da mesma forma, é importante evitar conceitos como “Sem força de vontade” ou “mau caráter.”. É o que o estudo em questão chama “Estigma Internalizado”, quando a pessoa acaba por acreditar e aceitar as características que lhe são atribuídas.

A desvalorização, humilhação e isolamento nada contribuem para a recuperação do sujeito, pelo contrário, leva a uma perda da autoestima e da crença em si próprio e na sua possibilidade de recuperação.  Também ao usuário não deve ser atribuído a imagem de coitadinho ou frágil, os princípios e práticas de Redução de Danos preconizam que os usuários de drogas devem ser agentes ativos de seu próprio tratamento bem como de outros usuários, compartilhando suas experiências e orientando. Mais do que um agente ativo o usuário precisa ser o protagonista na mudança de vida. 

Para concluir essa abordagem inicial sobre o assunto, recomendo a todos o filme "Bicho de Sete Cabeças" de 2000 dirigido por Laís Bodanzky baseado no livro autobiográfico de Austregésilo Carrano Bueno chamado "Canto dos Malditos". O filme versa sobre um jovem Neto (Rodrigo Santoro), que é internado em um hospital psiquiátrico após seu pai descobrir um cigarro de maconha em seu casaco.


Raquel Rocha
Economista, Comunicóloga, Psicanalista e Especialista em Saúde Mental
Membro da Academia de Letras de Itabuna


Esse texto faz parte de uma série de textos produzidos por mim a partir dos estudos no curso SUPERA (Sistema para detecção do Uso abusivo e dependência de substâncias Psicoativas: Encaminhamento, intervenção breve, Reinserção social e Acompanhamento) da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) do Ministério da Justiça (MJ), oferecido por meio da parceria com a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).




terça-feira, 7 de outubro de 2014

Compartilhando o Pão



Raquel Rocha
Economista, Comunicóloga, Psicanalista e Especialista em Saúde Mental
Membro da Academia de Letras de Itabuna


Imagem: Katie m. Berggren

Lembro da minha mãe fazendo sanduiche para a gente. Ela tinha um ritual que na época eu não entendia muito bem. Ficávamos todas em volta da mesa esperando cada uma o seu. Então ela partia o pão no meio, colocava as coisas dentro, fechava o pão, dava uma mordida e entregava para a primeira filha. Depois ela repetia o mesmo processo: preparava sanduiche, dava outra mordida e entregava para a segunda. Quando ela entregava o da terceira filha, a primeira pedia outro e pão e ela recomeçava todo o ritual. 

Passados os anos, refletindo com sabedoria e saudade, achei que entendi o motivo das suas mordidas: Ela não tinha tempo de preparar o sanduiche dela então ela ia comendo enquanto preparava o nosso. Minha teoria se confirmava no fato de que no final, raramente ela comia, porque já tinha se alimentado das mordidas nos repetidos pães que preparava para a gente. Sanduiche caprichado, um simples pão com manteiga, as vezes uma tapioca...  Não importava, ela sempre repetia seu estranho ritual da mordida.

Eu também preparo sanduiche para minhas filhas. Normalmente para uma de cada vez. Não tem fila em volta da mesa, elas gostam de coisas diferentes, comem em horários diferentes. Então preparo só dois sanduiches, o da filha em questão e o meu. O engraçado é que quando percebo, assim como minha mãe fazia, já mordi o sanduiche delas antes de entregar.  Não é racional, não tem função de me alimentar, afinal é só uma mordida, e eu vou preparar o meu logo em seguida. Mas quando percebo, já mordi.

Passaram-se mais anos. Refletindo agora, com mais sabedoria e mais saudade, acho que entendo o verdadeiro sentido do ritual dela. Não era se alimentar, era compartilhar... Compartilhar o pão e se alimentar de todo amor que foi colocado nele.

Espero que minhas filhas um dia também mordam o pão antes de entregar para as filhas delas.

Obrigada mãe,
Eu te amo.