sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A velhinha e a menina

 A menina não gostava de ir à escola. Não é que ela não gostasse de estudar, ela não gostava era da escola mesmo. Ela odiava tudo, os colegas, os professores, as carteiras enfileiradas, as músicas bobas que a nova estagiária trazia, o barulho da sirene e, acima de tudo, o recreio. O recreio era tortura, aquele monte de crianças correndo eufóricas, gritando, grunhindo, brigando. Os meninos que teimavam em jogar pedras em uma lagartixa, as garotas que formavam grupinhos pra maltratarem as outras. A menina realmente odiava aquela multidão que surgia nos 20 minutos de intervalo, achava que as pessoas em grandes grupos se tornavam piores, capazes de fazer coisas que não fariam sozinhas.

A menina chorava pra não ir pra escola. Seus pais estavam desesperançosos, achava que a menina não levava jeito pros estudos, mas mesmo assim a obrigava a ir. Então ela ia, todos dias, com passos arrastados, querendo não chegar. Queria ser invisível, se curvava e usava um óculo maior que ela mesma. Na hora do recreio procurava o lugar mais isolado possível para comer seu lanche sozinha, ler um livro e pensar numa estratégia de fuga de volta para o planeta ao qual ela devia pertencer.

Um dia a menina viu outra também sozinha, sentada na ponta de uma das calçadas, viradas para as árvores, alheia a multidão do recreio. Ela reconheceu a velhinha que fazia a limpeza da escola. Estava sentada, sozinha, assim como ela era sozinha. A menina sentou ao lado da velha senhora sem dizer uma palavra, apenas abriu seu lanche e começou a comer. A velha senhora olhou pra menina e sorriu, e começou a falar, falar sobre tudo, suas dores nas costas, seu filho ingrato, seus netos, sua vida. E todos os dias a menina se sentou ao lado daquela velhinha. E já não era tão ruim ir a escola.

Contaram pra mãe da menina que ela passava o recreio inteiro sentada com a velhinha da limpeza. A mãe reclamou “Essa menina é esquisita mesmo, nunca vai mudar, não tem amigas!”

A mãe estava certa, ela era realmente esquisita. E não mudou. Ainda tem as mesmas teorias sobre as multidões, ainda odeia carteiras enfileiradas, músicas bobas e continua suspeitando ter vindo de outro planeta. Adora livros e conversar com velhinhas. Mas em uma coisa a mãe estava errada: aquela menina tinha uma grande amiga.  



sexta-feira, 16 de agosto de 2013

O Envelope Pardo


"Itabuna 100 Anos", de Raquel Rocha, foi um projeto bem-sucedido em  minha gestão como diretor-presidente da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania. Repercutiu de maneira favorável em nossa comunidade ao ser exibido no Centro de Cultura Adonias  Filho lotado, como parte das comemorações do Centenário da Cidade. A direção da cineasta Raquel Rocha e o conteúdo com depoimento de pessoas,  que nasceram aqui e vivenciaram a nossa história, fazem desse documentário uma fatura exemplar sobre a recuperação de um tempo perdido. A linguagem dos entrevistados que ecoa nesse tempo posto na imagem revela momentos significativos da memória grapiúna."     Cyro de Mattos   






Hoje de manhã tive uma grata surpresa ao ler essas palavras de Cyro de Mattos sobre o “Itabuna 100 anos” um filme de 2010. As palavras dele me fizeram relembrar o tempo em que eu terminei a faculdade e me vi preocupada diante da possibilidade de nunca mais voltar a filmar, uma vez afastada da UESC e de tudo o que ela nos possibilitava.

 Eu sabia exatamente o que queria fazer da vida mas também sabia o que não queria. Não queria ter que ligar pro vereador x nem pro secretário y, não queria pedir a interseção de nenhum padrinho influente. Sondei a iniciativa privada e percebi que, se me apoiassem, seria também pelo conhecimento e não por interesse real nos filmes. Foi aí que coloquei dentro de um envelope pardo meu documentário de conclusão de curso (Nos Trilhos do Tempo) e meu currículo, fui até a Fundação de Cultura da minha cidade e deixei lá na recepção, na esperança de que alguém por lá visse e algum dia lembrasse do meu nome.

E não é que alguém viu? O grande escritor Cyro de Mattos o qual já admirava por suas poesias, já tinha visto de longe, mas com quem nunca tinha falado. Na época presidente da fundação, ele pegou o tal envelope, levou para casa, assistiu e me ligou para dizer que se emocionou ao relembrar a história da antiga ferrovia através do meu filme (meu orientador havia pressagiado que esse filme me renderia bons frutos). Meses depois eu estava na sala dele, numa sequência interminável de reuniões para a realização do Itabuna 100 anos. Exigente e meticuloso ele quis acompanhar cada detalhe da realização do filme.

E lá fui eu filmar sem o amparo da mãe UESC, me preocupando com detalhes como cabos, fios e fitas que antes era providenciado habilmente pelos técnicos. Mas escolhi a pessoa certa pra ser meu braço direito e esquerdo, grande Shintomi. E aos trancos e barrancos fomos vencendo os desafios, matando leões e o filme foi ganhando forma. Em todos os lugares que eu chegava a pergunta: “Você é filha de quem?”  Eu sabia exatamente o que queriam saber com essa pergunta: “De que família você é? Quem é seu parente importante? Quem lhe indicou? O que você fez para conseguir apoio de um órgão público?” Não perguntavam por mal, apenas estavam acostumadas a viver numa sociedade na qual ainda permeia herança de um coronelismo podre, onde homens de poder e seus apadrinhados mandavam em tudo e em todos. Eu respondia “Meu pai não daqui” e continuava meu trabalho.  Eu imagino que Cyro de Mattos também deve ter ouvido a mesma pergunta: “Quem é ela? Ela é parente de quem? Por que ela e não tal pessoa?”

E foi assim que tudo começou e assim continuo trabalhando até hoje, nunca faltou trabalho graças a Deus, cada novo é  sempre por mérito do trabalho anterior, nunca por indicação de ninguém. Ainda não estou envolvida com grandes produções, meus filmes são de baixíssimo orçamento, simples mas honestos. E me dão o maior orgulho.

De todos tenho um carinho especial pelo Itabuna 100 anos, por ter acontecido numa fase de transição, por ter registrado memórias de pessoas que já partiram dessa vida e principalmente por nascido da confiança em um simples envelope de cor parda.

Obrigada Cyro de Mattos,
Grande poeta, grande pessoa.






terça-feira, 6 de agosto de 2013

Nuovo Cinema Paradiso


 Por Raquel Rocha

Salvatore Di Vita é um famoso cineasta que mora em Roma. A primeira cena do filme mostra sua mãe tentando ligar para ele para avisar que alguém havia falecido enquanto sua irmã diz que é inútil, que ele não se importa pois há 30 anos não retorna a Sicília, cidade em que nasceu. Seria Salvatore Di Vita um boçal que renega suas raízes? A noite o cineasta, ao deitar, recebe o recado que sua mãe havia deixado, comunicando o falecimento e o funeral de alguém chamado Alfredo. A câmera vai se fechando lentamente no rosto desse homem e acontece a magia do cinema.

Salvatore é então Totó, um o coroinha na igreja da pequena cidade. Após a missa o padre vai até o cinema assistir o filme do dia e censurar as cenas de beijos antes da exibição para o púbico. Totó vai junto escondido e se enfia na sala de projeção onde o projetista Alfredo exibe os filmes para o padre. Alfredo o expulsa mas ele sempre volta. Alfredo briga com ele mas ele sempre rebate. Ele olha Alfredo retirar os pedaços de filmes com as cenas dos beijos e pede-as para si. Alfredo não dá, diz que é material inflamável, perigoso. Mas Totó sempre rouba alguns pedados que encontra no chão.

Totó é um menino difícil, não se encaixa bem nos papeis que deveria desempenhar, como coroinha, como aluno e como filho. Seu pai não havia voltado da guerra e sua mãe vivia com dificuldade com duas crianças. A única forma de felicidade de Totó estava no mundo dos filmes, onde tudo era possível. Por isso não conseguia ficar longe da sala de projeção do Cinema Paradiso, mesmo quando foi terminantemente proibido após provocar um incêndio em sua casa com os pedaços de película que tinha furtado. A teimosia do pequeno cinéfilo é maior que a resistência do projetista e aos poucos Alfredo aceita aquele menino e divide com ele sua grande paixão.

Alfredo o ensina a projetar filmes mas sempre o incentivando a estudar, pois ele precisava ser alguém, se livrar do vício do cinema, para não acabar como ele, que passou a vida numa sala de projeção esquecido. Uma belíssima amizade nasce entre essas duas figuras tão diferentes, o menino e velho, unidos pelo amor aos filmes que são exibidos no Cinema Paradiso.

O filme conta uma história simples, sem grandes viradas, mas o roteiro é construído com tanta sensibilidade que o expectador fica duas horas encantado diante da tela, sentindo-se exatamente como Totó quando fugia para a sala de projeção.

A força do filme talvez decorra do fato de se tratar de um retrato autobiográfico do diretor Giuseppe Tornatore (La leggenda del pianista sull’oceano, La domenica specialmente) que conta sua história de vida com sutileza rara. O filme fala sobre amizade, sobre destino, sobre paixão e sobre o quanto uma pessoa pode se importar com outra. A cena final é umas das mais belas da história do cinema. Não só a cena, Cinema Paradiso é um dos filmes mais belos de todos os tempos, uma declaração de amor, uma verdadeira obra de arte.

______

“Alfredo: Vivendo aqui dia após dia, você acha que é o centro do mundo. Você acredita que nada vai mudar. Então você sai: um ano, dois anos. Quando você voltar, tudo mudou. O fio está quebrado. O que veio a encontrar não está lá. O que foi o seu está desaparecido. Você tem que ir embora por um longo tempo … muitos anos … antes que você possa voltar e encontrar o seu povo. A terra onde nasceu. Mas agora, não. Não é possível. Agora você é mais cego do que eu.

Salvatore: Quem disse isso? Gary Cooper? James Stewart? Henry Fonda? Eh?

Alfredo: Não, Toto. Ninguém disse isso. Desta vez é sou eu. A vida não é como nos filmes. A vida … é muito mais difícil.”

FICHA TÉCNICA
Gênero: Drama
Direção: Giuseppe Tornatore
Roteiro: Giuseppe Tornatore, Vanna Paoli
Elenco: Agnese Nano, Antonella Attili, Enzo Cannavale, Isa Danieli, Jacques Perrin, Leo Gullotta, Leopoldo Trieste,Mario Leonardi, Philippe Noiret, Pupella Maggio, Salvatore Cascio
Produção: Franco Cristaldi, Giovanna Romagnoli, Mino Barbera
Fotografia: Blasco Giurato
Trilha Sonora: Andrea Morricone, Ennio Morricone

Quanto Mais Quente Melhor



 Por Raquel Rocha
Dois músicos desempregados (Jack Lemmon e Tony Curtis) acabam testemunhando uma chacina comandada por um gangster. Jurados de morte eles se travestem de mulheres e, utilizando os nomes de Josephine e Daphne, embarcam num trem para Miami junto com uma banda feminina. Na viagem eles conhecem a cantora Sugar Kane interpretada por Marilyn Monroe. Ambos se apaixonam por ela, mas precisam disfarçar o desejo e manter a postura feminina.


Dirigido por Billy Wilder, Some Like It Hot é uma comédia simples, mas espirituosa. Cenas hilárias de dois marmanjos tentando agir como damas e de Marilyn inocentemente íntima deles sem ter noção do quanto sua sensualidade os afeta. E eles repetem pra si mesmo “I’m a girl, I’m a girl, I’m a girl”. No período da lei seca, bebem juntos a noite na cama, brincando como meninas com a loira fatal debaixo dos lençóis. Para completar a comédia, um milionário (Joe E. Brown) se apaixona por Daphne e eles acabam encontrando o gangster do qual fugiam em Miami, exatamente no hotel em que vão tocar.

O filme é de 1959, mas ainda hoje funciona utilizando receitas que depois foram repetidas ao longo desses 50 anos. “Quanto Mais Quente Melhor” é um exemplo da capacidade mágica do cinema de provocar as mesmas sensações ao longo de décadas e claro, de eternizar a beleza de uma das atrizes mais deslumbrantes da história da sétima arte.


Gênero: Comédia
Direção: Billy Wilder
Roteiro: Billy Wilder, I. A. L. Diamond
Elenco: Al Breneman, Arthur Tovey, Barbara Drew, Bert Stevens, Beverly Wills, Billy Gray, Billy Wayne, Carl Sklover, Colleen O'Sullivan, Danny Richards Jr., Dave Barry, Edward G. Robinson Jr., Fred Sherman, George E. Stone, George Lake, George Raft, Grace Lee Whitney, Harold "Tommy" Hart, Harry Wilson, Helen Perry, Jack Lemmon, Jack McClure, JackMather, James Dime, Joan Shawlee, Joe Gray, Joe Palma, John Fields, John Indrisano, John Logan, Laurie Mitchell, Marian Collier, Marilyn Monroe, Mary Foley, Mike Mazurki, Nehemiah Persoff, Pat Comiskey, Pat O'Brien, Paul Frees, Penny McGuiggan, Ralph Volkie, Sam Bagley, Sandra Warner, Ted Christy, Ted Hook